1. O Tema e seu enfoque
Esta exposição trata da relevância de alguns conceitos lingüísticos
tidos hoje
como centrais no tratamento da língua em sala de aula. É evidente que
tanto
esses conceitos como sua centralidade não são consensuais já que essa
centralidade é definida com base em postulados teóricos aqui assumidos,
que
não se impõem naturalmente. Aliás, em questão de língua nada é natural2
, tendo
em vista ser a língua um fenômeno histórico, social e cognitivo.
O que se terá aqui é uma reflexão sobre o papel da Lingüística em sala
de aula,
os modos de sua presença e o grau de suas influências. Paralelamente a
essa
tentativa de situar os conceitos dentro de uma perspectiva
sócio-cognitiva
defendem-se de maneira sistemática duas posições centrais:
• primeiro, que ao se definir a "relevância da lingüística
no tratamento da língua", redefine-se a própria noção de
"ensino de
língua" como uma questão de trabalho com e sobre a língua e,
• segundo, que o tratamento3
da língua em sala de aula é uma
questão, num certo sentido, principalmente lingüística (com
tudo o que envolve o fenômeno linguagem) e não didática.
2. Pano de fundo e perspectiva
Antes de qualquer outra observação, gostaria de frisar que esta não
será uma
exposição em Lingüística Aplicada4
. Esta é simplesmente uma tentativa de
identificar os papéis da lingüística no “ensino de língua” tendo por
objetivo
central compreender como se deu a correlação entre o desenvolvimento da
pesquisa e sua aplicação ao ensino. Em geral, quando se tem um tema
como
este pensa-se na Lingüística Aplicada e, em particular, no Ensino de
Língua
Estrangeira, Segunda Língua ou Língua Materna.5
Meu tema situa-se no recorte histórico contemporâneo e tem caráter teórico.
Serve como uma pequena contribuição para discussão futura. Em síntese,
após
breves considerações gerais, concentro-me nestas três indagações: (a)
quais as
teorias mais adequadas para o trato da língua em sala de aula, se é que
existe
uma tal teoria; (b) qual a intensidade da presença de conceitos
lingüísticos em
sala de aula e (c) quais os aspectos teóricos que merecem mais ênfase.
Seguramente, estas três indagações só serão respondidas na medida em
que se
der uma resposta a uma questão prévia de fundo que pode ser objeto de
interminável discussão. Trata-se do problema dos objetivos do “ensino
de
língua”. Quanto a este aspecto, pelo menos em grandes linhas, podemos
concordar com a sugestão feita pelo Documento oficial do MEC, “Matrizes
Curriculares de Referência para o SAEB” (1999) que, em síntese, visa a
fornecer elementos para a montagem de descritores para a avaliação de
habilidades lingüísticas das 4ª e 8ª Séries do Ensino Fundamental e a
3ª Série
do Segundo Grau. Lê-se nesse Documento que:
A finalidade do ensino de Língua Portuguesa, tal como vem sendo
tratada em diversas propostas
curriculares, é criar situações nas quais
o aluno amplie o domínio ativo
do discurso nas diversas situações
comunicativas, sobretudo nas
instâncias públicas de uso da linguagem,
de modo a possibilitar sua
inserção efetiva no mundo da escrita,
ampliando suas possibilidades de
participação social no exercício da
cidadania.(p 13)
Para tanto, o mesmo documento considera a língua como “trabalho”, atribui-lhe
“dimensão histórica”, privilegia a “análise da dimensão discursiva e
pragmática da linguagem” situada em contextos da vida diária como “prática
social”. Em
suma, sugere a formação de um cidadão habilitado a usar de modo
adequado
sua língua em situações cotidianas dos mais diversos tipos para ler e
ouvir, falar
e escrever. O documento evita separar a leitura e a produção de texto
em duas
áreas diversas e caracteriza o conhecimento lingüístico como
“operacional”, isto
é, integrado à atividade social do indivíduo inserido em seus contextos
culturais
e necessidades práticas. A rigor, o documento é politicamente correto e
teoricamente adequado.
Neste contexto, torna-se relevante frisar, até como forma de contraste,
a posição
maleável desse documento oficial que inaugura nova e promissora
perspectiva
pelo menos na intenção. Pois é notório que a escola oficial, enquanto
aparato
educacional, no Brasil, sempre se apresentou, desde o século XVIII,
como
guardiã da língua escrita padrão, postulando a idéia de uma unidade
lingüística
nacional e, até, transnacional. A escola não só se arvorou em guardiã
da língua
como de suas normas e de suas formas mais prestigiosas. Reproduziu
modelos
idealizados e que devem ser continuados como forma de garantia da boa
expressão e manutenção de valores culturais desejáveis por todos os
cidadãos.
O curioso é que este tipo de raciocínio lapidar é ao mesmo tempo
lapidarmente
vesgo na medida em que esquece que a própria norma lingüística ensinada
no
Brasil é derivação de derivas históricas. A rigor, sem que se dê conta,
essa
mesma escola vai preservando a variação e a mudança.
Antes de iniciar a exposição, lembro o que afirmou Magda Becker Soares
(1998) em palestra na PUC-SP, ao discorrer sobre as “Concepções de
linguagem e o ensino de Língua Portuguesa”.6
Para a Autora, há diversas
perspectivas das quais se pode fazer uma reflexão sobre o ensino: a
perspectiva
da própria ciência, ou então as perspectivas psicológica, política,
social,
cultural e histórica. No presente caso, vou tratar meu tema da
perspectiva da
própria ciência e da perspectiva sócio-histórica. Preocupa-me como o
saber
escolar, na sua relação com o saber científico, foi se constituindo ao
longo do
tempo. Mas isto não significa que ignore a relevância das demais
perspectivas.
Os estudos do português, sob o seu aspecto filológico, já vinham se
desenvolvendo nos meados do século XIX e, com sucesso, já mapeavam os
falares e as diversas línguas em suas peculiaridades com descrições
dialetológicas e históricas tendo como metodologia básica de trabalho o
comparativismo essencialmente histórico e descritivo. Temos dessa época
muitos trabalhos sobre a relação do Português do Brasil e o Português
de Portugual.
A perspectiva é ainda pré-estruturalista porque não distingue níveis de
análise
nem se dá ao trabalho do estudo sincrônico. Depois surge a perspectiva
estruturalista que dominará durante o século XX até os anos 60 para dar
lugar a
uma visão multifacetada e pós-estruturalista, a partir dos anos 60, com
o
surgimento da pragmática, sociolingüística, psicolingüística,
etnometodologia e,
mais recentemente, o cognitivismo, que desembocam nas mais diversas
correntes que hoje tanto influenciam o ensino.
Diante desse quadro, num primeiro momento, gostaria de refletir
brevemente
sobre os dois pólos extremos da trajetória histórica do ensino de
língua no
Brasil.
3. Das Crestomatias aos Parâmetros Curriculares Nacionais
Se observarmos os manuais usados pelas escolas do século XIX até o
primeiro
quartel do século XX, constatamos que, no Brasil, eles praticamente
inexistem
na forma como os conhecemos hoje.7
Tirante as Cartilhas de
Alfabetização,
para os demais níveis nos Ginásios e Cursos Normais, a língua é tratada
com
base em Florilégios, Crestomatias, Antologias e Seletas de textos
escolhidos
entre Narrativas, Lendas, Fábulas, Moral, Religião, Geografia,
História,
Biografias, Apólogos, Romances, Sonetos, Poesia lírica, épica, Sátiras
etc. de
consagrados autores brasileiros e portugueses ou de traduções. É a
perspectiva
do guardião da boa linguagem.
Exemplo típico dessas obras é a famosa Crestomatia de Radagasio
Taborda, de
1931, da Editora Globo, que em 1953 atingia a sua 25ª edição com
140.000
exemplares vendidos. Investigações realizadas nos últimos tempos pela
Câmara
do Livro dão conta de que cerca de 70% do mercado livreiro no Brasil
constituise de obras didáticas, o que é admirável, já que tem o próprio Estado
brasileiro
(governos municipais, estaduais e federal) como comprador. Adotada na
maioria das Escolas Normais e nos Ginásios do Brasil, essa obra seguia
os
preceitos do Ministério da Educação publicados no Diário oficial de 31
de julho
de 1931, que determinavam como deveria ser o ensino do Português nas
três
primeira séries do ensino fundamental.
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